12.14.2009

Noite fria

Gelada

Alguns minutos
Muitos
Entre um espaço e outro
dentro do mesmo quarto
Um ponto escuro
Cintila
o sinal de uma virada.

Horas inesperadas

12.08.2009




isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

(Paulo Leminski)


Saudades.
Oito meses e dois dias com os pés aqui.

"tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo sem chorar, sem compreender que, por mau que parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era metade e semelhança da morte" (Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Anotado em 05 de abril de 2009, dentro do avião. 2009 já quase se foi.

Por mais que essa citação, depois de tanto tempo, possa parecer ambígua e sem um lugar, agora sinto vontade de estar debaixo do sol, com uma camiseta, bermuda, conversando com os amigos, tomando uma coca-cola, com um céu azul. Falando português. E me sentindo tão em casa, à maneira de um sentir absoluto, em que o mundo ao redor é grande o bastante.

12.01.2009

Ainda me impressiono como, aqui na ilha, o pensamento acadêmico acredita tanto na nomeação das coisas. Eles ainda não perceberam que podem se desvencilhar do sentido dado.

(capitalismo aqui é coisa séria)

11.26.2009

Pés gelados não conseguem sentir bem o chão que tocam.

10.25.2009

Nada pra escrever, mas vontade de falar.

Hoje, durante todo o dia, falei só por 14 minutos. Contados. Ao telefone e em espanhol. Ainda bem que existe a internet. Assim posso soltar uma palavras para o interlocutor imaginário. Absorto que estava em trabalhos e afazeres, não digo que cheguei a me dar conta do meu silêncio. Ouvi música, escrevi, li. As palavras nunca deixam de ecoar. Chegando à noite, no entanto, quis expeli-las. Falei sozinho, testei minha voz. De fato, outros ouvidos são necessários. Em português, de preferência. Senti o peso do pensamento. Ele tem o peso do meu corpo com o da comida que ficou na geladeira pra refeição de amanhã.
Não reclamo. Não produzo tragédias auto-piedosas (não mais). Acho bom perceber que, preso dentro das palavras não proferidas, meu pensamento se torna tão volumoso que se perde em si mesmo: perco o sentido. Isso me traz algum contentamento estranho, como se tivesse mais certeza do que sempre intuí. É necessário cultivar a boa comunicação, aquela tão rara quanto preciosa. Essa eu já possuo. Ainda que, por ora, meio distante fisicamente.

10.14.2009

Preciso secar as palavras.
Sempre tive essa impressão.

Mas nessa seca toda, cada gota mais gorda me alegra quase por uma página inteira.

Essa imagem foi roubada da internet. Não sei quem tirou. Tenho aqui no meu computador há uns meses já. Praia de Icaraí, numa tarde de um dia de semana qualquer.

É impressionante, mas olho pra ela e quase acredito que ela seja o que representa. No passar do tempo, aqui, tão distante do que ela retrata, ela, de fato, passou a quase ser aquilo que pretende representar. Minha memória se faz presente em imagens e sons. Assim ela se reaviva. E, muito mais, ela se faz presente nas minhas saudades, que oscilam em momentos, dias, semanas. Tendo a pensar que não sinto mais a falta física que sentia: já estou aqui e meu corpo aprendeu isso com os meses. Ele não grita mais: "não sou daqui". Tenho uma vida, hábitos, pensamentos. Meus sonhos já se mudaram, acompanham agora o corpo. O português me acompanha, quase exclusivamente no meu pensamento, que, durante o dia, se torna confuso com os idiomas, nasce sempre em português, mas no caminho toma a forma do inglês, do japonês, do espanhol, do francês. Cansa-se e, às vezes, quer apenas não ser. A língua se tornou tão notória que parece que precisa fugir de qualquer uma. Não ser mais pensamento. Mas, no entanto, se refestela quando reencontra o português, lendo o jornal, um romance ou falando na internet. Orgulha-se de existir e de ainda ser tão pregnante em mim.
Não sinto falta, portanto. Cheguei ao presente. Este presente que se faz existir sempre a partir (sim, é ponto primordial) das minhas saudades. É como se estivesse num paradoxo estranho: não acredito que necessariamente deva não estar aqui, ou estar aí, dentro da imagem. Mas a saudade já é necessária, concede alguma coisa que subjaz o tempo inteiro. A saudade já sou eu, de uma certa maneira. Aqui, necessito dela.

Hoje senti bastante saudade. E resolvi escrevê-la.

10.08.2009

Não porque me secaram as palavras. Nem porque me sequei delas. Mas porque às vezes elas já estavam tão bem encadeadas que se torna inútil repeti-las tantas vezes, tentando tomar um caminho diferente.

A minha vida parece uma montanha-russa meio tortuosa, mas cujas curvas radicais acalantam inúmeros espaços minúsculos (junções deles) que resultam em uma calmaria tão harmoniosa que já ofuscam o turbilhão. Não é verdade que cada curva é feita por momentos que podem se prolongar ao infinito? Lições que Borges nos deu.

Aqui, reflito essa curva imensa que é pura calmaria. Há pouco mais de um ano atrás, em 06 de julho de 2008, tudo parecia tão diferente do que é hoje, mas permaneço, sem dúvida, nessa mesma curva tortuosa:


"Espero aqui, sentado, balançando as pernas, o tempo se pronunciar. Ele nunca diz nada, mas deixa suas pistas delicadamente, utilizando-se de si mesmo para enganar-nos.

Malandro de outrora, no entanto, ele já não consegue me enganar tanto assim. Foco minha vista já cansada da espera e, juntando-me à sua eterna brincadeira de esconde-esconde, instalo-me no seu trabalho e, no esforço de imaginar a sensação do invisível, consigo degustar cada aceno que me dá. Conseguimos então, assim, selar a amizade que, ao mesmo tempo, provoca o escárnio e o imenso respeito que cultivo."


Sigo no meu exercício (o meu artifício mais bem trabalhado)...

10.04.2009

Em palavras mais simples:
conviver com a "intelectualidade" internacional me mostrou de forma brutal a urgência do pensamento brasileiro, latino-americano, que seja.

Não pelo fato de ser geográfico, mas pelo mais pungente fato de assim ser tão marcadamente percebido. Desfazer o geografismo a partir da sua adoção primeira. Por mais paradoxal que seja, mas algo como estratégias distintas ainda que num mesmo regime.

É como Deleuze percebeu, "não se sai de um dispositivo", mas é nele que está a sua própria superação.


(precisava escrever assim, de forma meio grosseira)
Chão

É estranho pensar isso, e mais estranho escrever ou dizer. Mas é como se estivesse alguma coisa por aí, a ser pensada, discutida, esmiuçada aí. Como se o pensamento tivesse aí a sua função, o seu fim. Não digo que seja utilitário o pensamento, mas ele põe algo a mover, retira a estabilidade, arranca as coisas do seu terreno estúpido da certeza. Pensamento como ação - não a "pró-ativa" atividade de fazer aparecer algo no âmbito do concreto, de fazer ir à frente em uma corrida tão mais abstrata quanto mais parece existente em números ou em dados. Mas uma ação que resulte em algumas inversões e que trate do óbvio com o espanto do novo - e sempre nesse caminho. Não exaltar o novo de forma vulgar e leviana, a novidade não é aparição, mas desvelamento.
Esse pensamento, estranhamente, me parece ter chão. Não me parece válido por qualquer motivo, nem por qualquer razão - a razão não o ilumina em qualquer seara, não o valida por qualquer joguete de lógica intrincada. Ele urge a partir de onde pode infiltrar-se, pungir e fazer pensar igual (ou distinto). Ele viaja a partir de um ponto: esse há de ser seguro e, de certa forma, percebido de antemão. Como se estivesse comprometido desde o seu (meu) nascimento. E por isso decidi tão fortemente pelo pensar, por ser desde um lugar, que não é assim, tão geográfico e tão calculável, mas uma situação, uma conjuntura, um devir específico que a mim me toca e que, por ser assim, tão de dentro compreendido por mim, é daí que devo saltar, e daí que devo pescar o óbvio e fazê-lo pensar. Nunca achei que fosse dizer isso, mas meu pensar é mais pensar quando estou no meu lugar.

8.26.2009

Sigo me assustando. Não está aí para o meu controle, essa coisa de ser tempo. De sermos ele e, dei-me conta, só ele. Ao tentar manipulá-lo, já fracasso. Preciso ser todo, e não ser nem um pouco aquilo que não é da sua ordem. Deixar-me no seu espaço, assim flácido, elástico, assim tão pouco sólido. De sólido já há tanto! Que tudo mais esteja para além do meu domínio. É um trabalho da memória, essa que se coloca para adiante e me deixa torpe ao já ser meu passado imaginado. Pergunto-lhe quem poderia ser? Impressiono-me sempre quando me vem tão alheio ao que poderia ter pensado. O tempo não se pensa. Fico num estado de pura euforia vazia. Quero preencher-lhe os buracos, mas com isso me ponho num trabalho estúpido, em vão. Necessito adentrá-lo com menos cuidado. Não tomar conta das palavras: não se trata de palavras. Trabalho árduo de não trabalhar, quando tudo me põe assim, num estado produtivo. Besta produtividade. Essa mascara um outro lado: o de não haver lados a serem mascarados. Vai-se sendo tempo toda vida.

8.22.2009

Para não me repetir demasiado, pus-me no deslocamento.
Tomei um avião e atravessei muitos mil quilômetros.
Mas, ah, que equívoco!
A viagem serve pra voltar.

Percebi que o pensamento (corpo) não necessita se deslocar no espaço a tantas léguas. Basta olhar quieto e seguir um certo movimento sutil. Não prescinde do espaço: só que não é tão literal e tão óbvio. É um espaço outro, menos afeito às turbinas dos aviões e aos trilhos dos metrôs. Mas colado a mil outras coisas, assim, em encantamento, muito distanciado do espanto fácil do novo.

8.10.2009

Vontade de vomitar uma imagem sem nada.

Já perdi o andar da carruagem, mas sigo catando a poeirinha que indica sua passagem. No rastro, o melhor - em processo de decantação.


Vontade de um mover de mãos dentro de uma tela. Saudade de cortar e colar. Falar, falar, falar.

8.09.2009

Há dias para se escrever. Não escrever o dia, descrevê-lo, elogiá-lo ou narrá-lo. A escrita funciona como uma extensão de um vazio, assumindo sempre que esse espaço não será ocupado. Não seria sequer um espaço, mas um impulso. Não se escreve para preencher um vazio. Isso é tarefa frustrada - ou, quem sabe, escrita frustrada. Eu, em palavras não-lidas, escrevo como para estender um estado, fazê-lo existir, ou existir nele com mais presença. Como uma percepção, lampejo que é quase material. Escrevo, então. Não são bem as palavras, muito menos as imagens que elas podem evocar. Deve haver em algum lado uma meia-fase, onde se consiga encontrar alguma coisa tão própria da palavra, além do seu som e aquém do seu significado. É disso que se trata, ao menos para mim, esse estado de escrita. Fico horas remoendo uns pensamentos difusos, alguns estados latentes, umas inclinações esparramadas: são essas as horas das palavras. E, apesar de tudo, já parto de um engano rotundo. Pois sim, estão aí símbolos enfileirados, prontos para serem decodificados em significados. O bom seria fazer dançar essas estabilidades.

Contudo, já tenho alguma resposta. A palavra é minha. Essa, em português. Estando rodeado de tantas outras, flutuo num sem-chão. Hoje senti o português brotar no meu pensamento, pulular na minha boca. Não queria japonês, nem espanhol, nem inglês. Para poder retirar a palavra da sua certeza com alguma graça, necessito antes sabê-la toda minha, dentro de um território seguro. Tenho relação certa com essas que me trazem afeto, o português que me moveu por anos e que faz alguma ponte da visão com a minha imaginação. Só me dei conta aqui. Leio Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e Saramago, em pleno Japão, e eles me parecem quase metafísicos, de tanto que compreendi - creio - o pathos de uma língua.

E por isso hoje senti que devia escrever. Por ter percebido que, em português, escrevo muito mais do que para comunicar. Necessidade de escrever sem descrever.

No canto esquerdo inferior, uma data: 31/3/2009, 23h37. Detalhado até os minutos. Salteando pela memória, achei uma imagem assim, escura, noturna, gente relaxada conversando, bebendo. Todos absolutamente entretidos com suas vidas. É uma rua, há uma marquise e luz branca que ilumina uma faixa da fotografia. Há um senhor, pernas cruzadas, tronco levemente inclinado para a sua esquerda. Ele fala e pouco gesticula. Sugeriria que ouve mais do que pronuncia. Observa com atenção. É terça-feira e deu-se ao direito de ir tomar uma cerveja no bar da esquina.

Na imagem, uma esquina. Ocupada, gente conversando. Gente e esquina (repito algumas vezes o par). A memória não me falha na imagem. Sobreponho imagem e imaginação, e olho para frente, através da janela. A diferença é abrupta e me ponho absorto em pensamentos tão óbvios que me causam pena de mim mesmo. "Que ridículo!". Tenho a imagem pra me dar conta, pra não me esquecer. Do pátio imenso e largo que é, minha memória me coloca tão mais nesse presente que se arrasta com o calor úmido dos dias.

Para isso, a palavra não basta. Tampouco a imagem. Sigo tentando uma instalação segura no intervalo entre as duas coisas. Ai, que bom seria poder. Da varandinha, empurro os pensamentos pra longe, num método estranho da vontade de dizer o indizível. E, ademais, a quem?

Saudades desse devir imperceptível.

8.03.2009

A escada era de mármore e exalava um cheiro entre nauseante e muito agradável. O hall de entrada - uma pequena área, antes um vestíbulo - também tinha seu piso todo de mármore, que se estendia pelos três lances de escada. A pedra branca tinha umas pequenas rachaduras, e compunha um padrão xadrez com as placas de pedra preta que se intercalavam. Sempre que passava do portão da rua e aí entrava, o cheiro tão forte me lembrava algo próximo de um açougue para, no momento seguinte, transformar-se em um aroma de pedra refrescante, que me dava muito prazer. Talvez, acima de tudo, o prazer de estar de volta. Sempre era recebido nas minhas chegadas pelos degraus brancos. Não importava o calor da rua, nunca era desagradável voltar para casa.

7.18.2009

Um hábito estranho. Podem achar doente, que seja. Mas tem um pedaço desse mundo virtual - vasto, porém cheio de vícios, caminhos repetidos - que não me canso de visitar e revisitar. Ele nunca - nunca! - vai mudar. Nem uma letra a mais, nem uma vírgula a menos. Fica ali, perene, sólido, cheio de incertezas que nunca vão se resolver. É como se tivesse preso ali, naquela tela, naquelas cores escolhidas, fontes, números, dados de html. Um pedaço de tempo que estancou em uma fórmula, um espaço fechado a sete chaves, que conserva seu ar intacto ali dentro. E uma voz, tão viva, que me chega aos ouvidos quando por ali resolvo passar. Não digo que há frequência notável: a cada três meses, quando muito, me pego olhando pras suas frases encadeadas. Como se eu pudesse experimentar uma presença estranha, que já há muito é ausência. Não pensem nada sobre mim, não estou com nada, nem passando por nenhum problema. Gosto de ouvir seus pensamentos, às vezes límpidos, às vezes confusos. Só isso. A nostalgia não é tão determinante quanto o real interesse pelo presente daquele texto. É uma mágica da internet: fica-se sempre. Novas configurações de memória, diria o título de alguma tese de doutorado. Eu digo: alguma humanidade que salva a literatura, o texto, a palavra escrita, a porcaria que é a internet, em geral. Então fico lendo. Pouco a pouco, pra que me reste o que descobrir da próxima vez. Percebo que podia ter ouvido mais da sua própria boca, mas lembro que às vezes não é possível se entender as coisas enquanto estão acontecendo. É preciso algum tempo, decantamento. Então, nesses passeios, a ausência se esvai, e uma presença quase latejante está aí, pronta para ser ouvida. Quase ouço essa voz que não se ouve há tanto tempo.
Não posso sentir muita coisa. E não digo que pouco me importa tudo isso, a história, minha família e todas essas coisas que me empurraram para dentro dos meus ouvidos desde que nasci. Não sou dissimulado o suficiente. Talvez lhes importem mais a quem o diz. Mas, enfim, isso a mim não importa - quem o faz e quem não. Mas de fato, não sinto tanta coisa assim. Já era de se esperar. Desde que cheguei, percebi isso: aqui nada me fala. E não há importância no fato de que fale a língua, conheça os hábitos, e até saiba do seu pensamento. Interessantes, distintos, pitorescos e surpreendentes. Emocionantes e familiares são adjetivos muito forçados. A narrativa não vai tão longe, posso garantir. Quem inventou a balela de encontro de raízes estava certamente tão fascinado com a História de um Si transcendente que não pôde se lembrar que historietas são mais acalentadoras. Aquelas de ontem, do ano passado, de um minuto de um dia qualquer. E que o corpo é tão mais senhor da presença (e da ausência, por que não?) que ali estão memórias preciosas, que dali saem e para fora se escapam. Não me emociono, não vejo nenhum passado que seja meu em nenhum lado pra onde olhe por aqui. Não que isso seja algo ruim, mas tampouco me ponho a buscar um arroubo de profundidade metafísico-memorialista em algo que aí está, assim, que é do corriqueiro, da vida daqueles que aqui passam. E eu também aqui passo. Agora. E meu corpo não encontra acúmulo nenhum que o arrebate. Acúmulo, se há, é nele, e não por aí afora. E dele podem sair coisas novas e se reterem outras. Dele, sempre, porque, inevitavelmente é de mim que falo agora.

7.05.2009

3 meses.

Há exatos três meses, estava em algum avião, no caminho...

Em três meses, muitos anos. Muitas vidas diferentes. É impressionante como as mudanças são perceptíveis quando o tempo é contado e atentamos aos nossos humores com os sentidos bem apurados.

Pois sim, são três meses e muita coisa mudou. Já tenho meus passos que caminham sozinhos, pelas ruas que eles escolheram com o passar dos dias. Tenho assuntos e risadas espalhadas por alguns cantos da cidade, e alguns ouvidos nos quais as minhas palavras já cavaram seu caminho certo. Tenho imagens e olhos, alguns cheiros e barulhos, tenho um pouco da cidade já descascada pelas minhas passagens. Tenho passagens e paradas. Já fiz meus buracos e gastei alguns pedaços de piso das ruas e das calçadas. Tenho minhas horas, meu tempo. Já construí um tempo meu, único, e pouco afeito ao que me ensinaram quando cheguei. Tenho segundas, terças, quartas, quintas, sextas. Tenho sextas! Tenho sábados e domingos. Domigões, almoços, passeios e gente em casa. "No Japão, é assim, é assado, aqui se faz dessa forma e não da outra". Já criei minha maneira e posso manejar o meu país dentro dessa ilha. Tenho algo que aproxima de uma casa - passageira, no entanto, e isso será sempre, eu creio.

E, em três meses, também percebo o que de lá tem morada aqui. Percebo ruas de Icaraí que cismam em andar na minha memória, algumas mesas e cadeiras da Praça São Salvador, umas muretas da Urca, algumas mesas no Humaitá, o cheiro e o frescor de umas árvores em Pendotiba e o mar das praias - elas todas. E sinto ainda o suor de um sol úmido, levemente salgado. Percebo com clareza o que fica e, presente sempre, é ausência mais aguda, que vai e volta nas horas em que durmo ou me deixo sair daqui. As vozes, as risadas e os humores. Meu pensamento que flui, em português. O português que às vezes brota borbulhante, no meio de uma frase em japonês, ou em inglês, ou espanhol. A língua me dói tão fundo que às vezes me cego e me perco.

Enfim, 3 meses, e, em tão pouco tempo, tantas possibilidades de viagens. Ainda muitas outras por vir.



6.20.2009

Todos deviam saber português, pra poderem ter a possibilidade de ler Guimarães Rosa.

6.18.2009

Passam, os dias e as horas. Assim, os pensamentos. Aos poucos, vou chegando em Kyoto. Mesmo que de lá, do outro lado do oceano, creio que nunca tenha saído de verdade.

O tempo é tão ligeiro, amacia o espanto e vai fazendo as coisas acontecerem. Ainda sinto falta do tempo que não passava jamais, de quando não olhávamos pra ele. "Olha aqui, na minha cara", ele esperneava. Não sei por que, mas hoje escuto sua voz, sussurrando como uma brisa no meu ouvido. Abro os olhos e o dia ensolarado me traz alguma boa memória. Sinto falta daquele tempo, ignorado. Era uma mágica suprema, aconchegante e recheada de bons encontros. Agora, na memória, sou muitas saudades. Não tem muito jeito, nasci no meio de tanta coisa inexistente, imaginação tão cheia de reentrências, protuberâncias, escorregos e rebuscamentos; nasci já sentido saudade, eu creio. Coisa esquisita, diriam alguns. Pra mim, sempre que estou, percebo o quanto estive, estiveram, estivemos. O tempo de hoje me assombra, sempre. Desde ontem, quando acordei no meio daquela luz branca e quentinha, debaixo da coberta do meio-dia. Gosto de chá, cabo de guarda-chuva, torrada com manteiga e milho quentinho. Um tempo tão maior do que eu.

6.09.2009

Imaginação da cidade


Imagino uma cidade. Ela tem luzes e árvores que se esparramam pelas ruas. À noite ela cresce e engole todos os meus pensamentos. As suas bordas são como linhas borradas - porém nítidas aos olhos atentos - que não conseguem separar o fora do dentro. Tudo ali, naquele limiar, se mistura. Uma cidade feita de bons limiares. Percorro seus caminhos com um olhar embevecido e curioso. Olhar de criança. Ela se extrapola a si mesma. Nunca pára de se criar. Imagino que tenha muitas pessoas e tanto mais esquinas. As vozes são rápidas, altas e gargalhadas. Elas carregam algo de interessante. Não consigo entender o quê, mas na minha imaginação, elas estão lá, aderidas ao seu cenário. Os cheiros são agudos - nada de meio-termo. Eles se encontram na minha frente, e perfuram o asfalto, as árvores, e as quinas rachadas do meio-fio. Chego a imaginar seus vôos entretidos, rachando aquele cimento cinza pra percorrer a matéria da cidade. É uma cidade de espaços, amplos, com pontos luminosos aqui e acolá. De manhã, ela se espreguiça toda, e estica seus braços pra fora dos seus domínios. Ela se derrama toda pela sua vizinhança, como se afagasse de leve a superfície que lhe foi atribuída. Passa a mão nos cabelos e suspira leve e satisfeita. A cidade sente a moleza da manhã e ri de si.
Imagino ter imaginado inúmeras vezes essa cidade. Na memória, essa cidade se solidifica e se decompõe, a cada oportunidade de olhar para fora. Seus penduricalhos tomam forma. Ela data de 1984, e segue nascendo por aí. Mais ou menos de dois em dois anos, depois de muito espairecer, ela ganha novamente o mapa. Espalha seus tentáculos e reabre sua temporada. "Nasceu!". A cada nascimento, posso imaginar ouvir uma música tranquila ao fundo, enquanto ouço vozes familiares, risadas de crianças e sinto o cheiro salgado de um mar azul e muito extenso. E ela chora um choro cheio de vontade, com gritos prolongados de quem inspira o primeiro ar nesse mundo. Esperneando pelos cômodos. Choro com gosto de leito fresco. Imagino seu nascimento, imagino que nasce a toda hora oportuna. Imagino nascer, quantas vezes forem boas e na medida, assim como eu.
Dois meses e cinco dias fora de casa.

Dois meses e três dias em Kyoto.

6.05.2009

Nhenhando, num deslim. A marcha estradeira da palavra. Cismosa, entrando em si, na meio-sonhada ruminação. Meu amigo Guimarães Rosa, aqui, nesse longe que estou, esquentando um pouco a alma com palavras quase cantadas. É impressionante como tudo fica macio quando ele escreve.

"A felicidade é o cheio de um copo de se beber meio-por-meio".

Soropita fica feliz com Doralda, lá no Ão do meio do sertão. Basta saber olhar: de dentro de cada coisa, umas cem mil palavras, que, em vez de representar, apresentam um outro modo.

Em vez de economizar, às vezes derramar aos montes pode ser outra forma de economia, tão simples quanto. Não o excesso das voltas que nunca páram, mas o adentrar do olhar nas dobras que podem ser desfolhadas de cada coisa.

Um dia haicai e outro Rosa. Assim se vai.

5.31.2009

O sol esquenta às vezes. Noutras, ele é como uma sombra sem o escuro. Claridade para se ver: a pele ainda trinca e a perna treme.

A comida é boa, suficiente. E a conversa flui - às vezes passa rente aos ouvidos, mas isso já pode ser bastante para se esvaziar a mente. Inúmeras vezes fico parado, fingindo ouvir as frases, sem o menor interesse no conteúdo. Concentro-me nos gestos, e no mover das minhas mãos em diração ao prato.

***

É estranho como não consigo estar aqui o tempo inteiro. Assim, estando inteiro. Uma parte sempre escapa, escorrega pela frestinha que fica aberta nas horas mais inusitadas. Escapo assim, sem ruídos, mudo num encantamento esquisito que me prende aqui, deixando-me livre para não estar quando assim não me apraz. "Mas aqui não estou", sempre me vem essa intuição.

Lá, o oposto. Desde o acordar até o dormir, a única certeza que tinha - e terei sempre, suspeito - é de que lá estou a todo momento. Vôo livre e descuidado pelos mais espaços e tempos imaginários: porque nada me prende, mas solta-me para escolher lá estar o tempo todo. Aquela sensação me apraz, como se assim, estando inteiro, só assim, pudesse estar metade, um quarto, quantos fragmentos fossem, espalhados pelo ar, na certeza de alguma unidade que os une. Como nunca acreditei na liberdade, encontro a satisfação no pertencimento: um pouquinho de mim espalhado pelo vento. Lá, na casa, não me ocupo de mim jamais. Posso ser, desse jeito, puro esquecimento - sensação única e valiosa.

5.27.2009

Fora das expectativas habituais, o hábito ainda não lhe saiu do corpo. Ele anda pelas ruas, mas sente nos seus póros a ausência de algo que ali não se encontra.
Estranhamente, apesar de todos os clichês do novo, sentia que quanto mais se movia, mais estagnado se encontrava.
Quase compulsivamente, buscava encaixar seu corpo e seu hábito na nova forma e no novo ar que lhes eram impostos. Talvez estivesse por demais acostumado a algo que lhe seria muito peculiar. Aquela alegria toda não pode ser achada em qualquer canto. Mas seria então aquele o canto que lhe aprazia: ali deveria estar, não importassem as condições.

Não via a hora de se mover novamente...
Assim, o tempo passando...

passando.

5.10.2009

Domingo Nostálgico


Retirado de um distante texto de uma distante Juju, nos idos de 2007, nos confins de uma Alemanha quase Japão:


"Quero saber de amanhã, não quero saber de oceano. Quero Dezembro e Carnaval. Nunca achei que fosse querer isso."


Só temos soluções, sempre. E elas sempre vêm acompanhadas de tantas coisas: penduricalhos bons, feitos de boas, extensas, profundas, rasas e macias palavras, abraços e afetos. Corremos atrás o tempo todo dos problemas (eu sei que isso pode parecer clichê, mas é essa a impressão do momento).


*


As cidades em mim


A cidade aqui funciona como um mecanismo correto. As pessoas vestem ternos, trabalham de manhã até à noite. Embriagam-se e ficam felizes para pegar o trem e voltar no dia seguinte. As meninas e os meninos se vestem impecáveis. Andam com seus celulares à mão. Comunicam-se intensamente até o momento em que se encontram. Agradecem, desculpam-se, escondem-se embaixo dos seus cabelos complexos e empinados. Os carros andam na velocidade esperada, param no sinal, continuam, nunca estacionam (aonde vão todos eles quando não estão em movimento?). Os prédios - perfeitos como todo o resto - ao cair da noite, colocam suas roupas contemporâneas e deixam deslizar os letreiros, as imagens, as grandes placas de luzes - azuis, vermelhas, brancas, amarelas. As lojas vendem, as pessoas compram. Elas fumam nos lugares permitidos e desculpam-se quando se esbarram. Elas quase nunca se esbarram - mas são tantas! (Como conseguem?).

A grande máquina perfeita.

Enquanto isso, do outro lado, um sobressalto e outro do grande caos urbano: a máquina se lembra de que é máquina. Nos intervalos - longos e expansivos - as pessoas respiram com apuro, olham bem pras outras, e sentam na mesa pra bater um papo. Estão na máquina desnudada: tempo suficiente para se esquecerem e se enredarem.

A máquina é ótima, mas ela pode se desmantelar toda naquela mesa de bar. Assim é possível juntar novamente suas peças e contruir um novo mecanismo. Em mim, não aparo as arestas, nunca: deixo elas se colidirem e encontrarem seu encaixe. (Talvez por isso eu prefira o Rio).

5.08.2009

mergulho no mar
baixinho
tarde de domingo

*

meu haicai tem gosto de sol
espero as palavras chegarem
sujas de areia e brisa salgada

5.07.2009

Da janela, umas nuvens escuras.

São 4, 5, 6, 7, 8 horas. O dia vai passando, e lá estão as nuvens escuras.

Preciso de um som, um barulho ensurdecedor.

Mas tenho apenas essas nuvens escuras. O ar é gelado, mais uma vez, e a pele trinca com as lufadas de vento.

À meia-noite, seguro a caneca de chá. Já não vejo mais as nuvens. A cidade se iluminou - mas não ficou bela.

5.06.2009

"Comigo é sempre assim. A viagem é pra dentro."
Sobre o tempo


Um mês no Japão.

Na atividade do relógio, as memórias vão ficando cada vez mais consolidadas. O espírito está por aí, de carne e osso. Cada passagem finca um pouco mais fundo a memória. A imaginação da distinção entre corpo e espírito é colocada à prova todo o dia aqui: acho que existe, mas luto por que, de fato, não há. Fico na teimosia de não me deixar levar.

Diria: "estou aqui". Mas meu impulso primeiro é: "estou lá". Misturo a visão com a imaginação, e, por vezes, sinto o vento um pouco mais quente e o ar um pouco mais salgado. Hoje sonhei com Mauá ao som da voz dos amigos. O pensamento - e o espírito, e o corpo, por que não? - falam um português bonito e límpido. Quando mudo o idioma, encontro-me numa mímica estranha de mim mesmo. Porém, sempre me lembro: essa mímica ainda sou eu.

Contudo, não consigo deixar de olhar o relógio. O tempo virou meu companheiro mais íntimo: espreito-o a toda hora, e converso com ele quando estou em casa. Como se sentisse o passar dos dias no ar, nos pulmões (inspirar e expirar) e nos meus pés. Como se pudesse andar o tempo: empurrá-lo pra trás com meus passos. Aqui o tempo virou espaço. Mas, de alguma forma, fora de mim. O tempo, nesse um mês, saiu e tomou conta do que me cerca - mas não se encontra mais em mim. Então eu vejo o tempo, quase toco, mas ele não me toca.

Todo dia, ainda tenho um estranhamento: mas será que estou aqui? Parece algo ilusório, uma brincadeira estranha. Como se o real tivesse ficado me esperando no Rio... Deixei o meu tempo lá, deitado na minha cama, andando pelas ruas. Aqui ele passa na minha frente, ao meu lado, rebate. Eu o empurro: quero meu tempo, mas ele se encontra tão longe...



(Joaquim Távora, Icaraí)

Dormindo, descansando e tomando sol.

5.01.2009

Niterói

Para não desfacelar a face de uma cidade, aparar suas arestas. Recostar nos seus cantos, suas esquinas. Calcular os passos de vez em quando. Sair para andar, tracejar novos espaços. Desfazer, refazer, desconstruir os mapas. Pela mesma rua, em outra calçada. Cada rua tem mil calçadas. E cada calçada, outros mil caminhos.

Parar a cada minuto, virar as costas e reconsiderar as possibilidades. Fazer rotinas e desmantelá-las. Uma a cada cinco dias. Depois voltar, o tempo todo. Ouvir suas conversas e descascar as suas camadas.

"Vamos tomar um café?" Dois, três. Quantos cigarros forem necessários. Depois percorrer os seus vincos todos. Aqueles viciados e aqueles renovados. Adentrar a noite.

Sem surpresas, mas um frescor de brisa de fim de tarde.

Não devemos plastificar as experiências.


***

Em Kyoto, percebo Niterói.
Estranha essa sensação.
Coletei cinco imagens na internet, mas nenhuma é Niterói. Todas mentem ao dizer serem.

4.28.2009


Enquanto ainda sobrevôo o oceano, o vento sopra forte pra todos os lados.

4.26.2009

Da varanda, vejo a cidade se resfriar toda, recolhendo-se como um papel molhado ao secar sob o sol. Mas não há sol. Nem um vestígio. Uns sons avulsos de carros. Um choro de um corvo. Gritaria de crianças. Como se estivessem o tempo inteiro a cortar o todo que ainda não toco. O ar é limpo e o céu é branco e cinza até onde se vê. Venta muito.

Entre um e outro corte, escuto alguns ecos fortes. Sem pensar, chego a sentir o sol batendo sobre a pele. Algumas vozes macias chegam aos ouvidos. Assim, sem pensar, consigo fazer a volta e olhar pra dentro daquela luminosidade. Amarela e azul, amarela e azul. Sinto outros cheiros e minha mão chega a se desdobrar em centenas de dedos, refestelados sobre a superfície macia da cama matinal.

De um a outro, num soluço, volto a estar de pé. Varanda seca e céu molhado. O papel já se encolhe quase ao tamanho de uma poeira.

4.23.2009

Fernando Pessoa faz a minha companhia perfeita.

No meio de tanta coisa, é bom ouvir uma boa voz em português, mesmo que seja saindo de umas folhas de papel.

Na sua forma Bernardo Soares, o português consegue exprimir quase todas as minhas sensações com meia palavra.

Tenho saudades do português.

4.15.2009

Sobrevoando o oceano.


Vancouver: 5:24 pm
Tóquio: 9:24 am
Joaquim Távora: 9:24 pm


Pra cada chegada, talvez mais de mil partidas.
Para cada viagem, criam-se algumas pequenas centenas de mortes.
Morre-se um pouco em cada canto.

4.12.2009

"Tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim ficar com eles todos, que o separar-me deles era metade e semelhança da morte" (Fernando Pessoa)

Na Rua Joaquim Távora, assim como na Rua dos Douradores.

*

Assim, olhando pro relógio, percebeu que estamos metade fora e metade dentro do tempo. Sempre dessa forma: inteiro é impossível, dir-lhe-ia qualquer um de bom senso.

"Como se inscrever numa nova situação?"

O novo acalanta o velho de uma forma quase cruel. Não numa dialética, mas sincronicidade impressionante.

Estando aqui, caminhava os passos de lá: na beira da estação de trem, mergulhou o pé na água do mar salgado e verde que remexia com as ondas da Baía de Guanabara.

3.28.2009

Não como morrer,

mas talvez aquele estado de latência do coma induzido:

há lá uma vida, apenas distante do que nos é visível.

3.24.2009

Lamento perto do fim


Mas é tão bom...


Mas era tão bom...

.
.
.


[segurando a metafísica, sempre]

3.15.2009

Estrebuchar
Chafurdar

às vezes as palavras prescindem do seu significado.


Hoje de manhã, acordei tão bem disposto, que estrebuchei um pão com queijo minas delicioso, enquanto a luz do sol chafurdava nos meus pensamentos.

O estrebucho ficou preso ali na porta da sala. Não chafurda demais, senão ele pode acabar soltando e quebrando o vidro da mesa.

3.10.2009

Atividade de esvaziar sem estagnar

Diante da cidade
por sobre. sob. entre. dentro. fora.
de todos os afetos
Antes de ver e depois de ouvir
(sem falar)
Diante da multidão de ausências
madrugada
e as horas que passam
passam e páram e acenam com a luz amarela de poste
As pessoas tão assim
entretidas em si
Diante da miríade incomensurável
de camadas secas e molhadas
dos espaços que trepam
uns sobre os outros
Caminhos possíveis
eu, o outro
Diante.
Mergulhou
num fôlego do tamanho da sua memória
tentou escrever a saudade e a presença e a ausência

Mas não se trata de escrever. Nunca. Nem de ver. Muito menos isso! Nem ouvir, nem representar.

Esteve um pouco. Recostou e existiu por quatro tempos de um silêncio que espalhou pela superfície.
Dos olhos. Do asfalto das ruas. Do cinza do azulejo. Do azul metálico do carro a 100km/h. Das vozes queridas.

Assim é a cidade. Assim terá que ser.

3.02.2009

Atividade de um cheirador


Quanto de espaço sobra depois de aspirar com as narinas todas as ruas da cidade?

Como o drogado cheira sua carreirinha, ele passou a se dedicar, dia-a-dia, a puxar para os pulmões as ruas e quarteirões de que sentiria mais falta.

As esquinas ficariam, quem sabe, pra última semana. Essas seriam demasiado pesadas pra um sorver corriqueiro.

Mas, afinal, quanto de espaço sobraria?

2.26.2009

Carnaval






Cidade e pessoa
fundidos na imagem.
Carnaval e cinema
fundidos na possibilidade.
Quarta cinzenta


Primerias despedidas.

Carnaval: como não sei quando acontece de novo (pra mim), achei que devia deixar registrado que o carnaval no Rio é sempre muito bom... cativa assim que começa...

Sempre reclamo uma semana antes, e sinto falta uma depois.

Todos do mundo deveriam passar por uma experiência aproximada. E uma cidade devia sempre poder ser outra, nem que seja por alguns dias, como acontece aqui.

Como uma intervenção coletiva, sem utilitarismo e ideologia: a mais pura reocupação estética dos espaços.

2.11.2009

Pensamento:

Talvez pintar, filmar, montar, recortar

Outras vezes, escrever
Falar, olhar.

Sem pensamento
[Antes do pensamento]
O pensar

Entre duas paradas
Entre duas consciências:
pensar sem o pensamento.

O verbo não precisa redundar em coisa alguma.

2.04.2009

Sobre melancolia e escrita


Mais uma vez, roubando ímpeto de outros lugares.

Pois disse ele - ou deixou implícito - que para se escrever é necessária a melancolia. De onde vem a melancolia?, perguntaria-lhe. Do espaço, do tempo, ou de uma transcendência? Do mesmo lugar de onde vem a escrita?

Enquanto trabalho na tese, percebo que podemos montar a melancolia. Assim, talvez, questionasse-lhe: "ela não pode vir de um palco?". A performance da escrita é a mesma performance da melancolia. Assim como a da alegria, talvez. Performance, que, obviamente, não é menos nem mais imanente que qualquer outra coisa - porque não é menos nem mais verdadeira.

E, quem sabe, não esteja aí a grande chave da escrita. Pode-se performar o real, o falso e todos os pathos de uma só vez.

Num quarto de hotel, em Itajubinha do Norte, certa vez, estive escrevendo sobre o inverno de Paris de 1946, pouco após o fim dos bombardeios. Disse como andavam felizes as moças, com seus chapéus alongados e seus lenços cobrindo o nariz quando passavam pelo mal-cheiro do esgoto ainda a ser refeito. Na grande alegria que me tomava naquele verão na pequena cidade litorânea baiana, consegui ser melancólico como um ex-combatente de guerra sentado num café, olhando o capitalismo emergente na Tóquio de 1967.

A minha melancolia, no entanto, me propôs uma viagem de verão à beira do mar de Honolulu, quando estava sozinho sobre a terra evacuada do campo de refugiados em Kosovo, lá pelos idos da década de 1990. Não como um remédio ao presente - nem como uma fuga - talvez como possibilidade de escrita mesmo. Presente da linguagem. Assim, enquanto catava os restos da minha casa, consegui descrever com precisão o frescor do coco que sorvia a pequenos goles sentado na beira da piscina no Copacabana Palace.

Posso também estar melancólico e efusivo, ao mesmo tempo. Talvez essa seja a maior felicidade. Nesses dias, escrevo um haicai para subtrair-me do mundo. Esse aqui, escrevi por volta do século XVII, imaginando ser Matsuô Bashô:

ossos desgastados
em minha mente
um corpo perfurado pelo vento


Não uma descrição do mundo, nem a mim mesmo - já sabemos que esse é um privilégio que nem a fotografia alcançou. Talvez a escrita seja essa possibilidade de exterioridade. (tudo culpa da minha tese...)





Link
Entre ser e não-ser: verão carioca.

Um copo d'água, um mergulho e um líquido qualquer. Mas, de fato, em estado de latência: escrever, escrever, escrever, até acabar.


[um dia acaba]

1.25.2009

Viu o sol batendo na pedra.
Toda a manhã, das 6h46 até meio-dia (porque depois já é tarde, aprendera). Viu, todo esse tempo, cada segundo, o sol batendo na pedra.

Ele não batia, pra falar a verdade. Antes, ele parecia se recostar sobre ela, esticar bem os braços e soltar um bocejo daqueles "ai!, que preguiça que eu tenho", como se dissesse. No seu amarelo desbotado, parecia apenas contornar as cores que já estavam lá. Amigavam-se e ternamente trocavam confissões sutis e delicadas, a pedra e o sol. Não batia, de fato.

Então, todo esse tempo, estava o sol a acariciar a pedra. Ele viu, não tirou os olhos nenhum segundo - "os olhos que a terra há de comer", diziam alguns. O sol também chegava na terra. Mas antes da terra tinha o mato, tinha as folhas secas, as formigas paradas, as formigas andando, as formigas carregando as folhas secas e as formigas descansando na sombra da pedra. A terra, essa não merecia tanto assim sua atenção - "só porque era o destino dos meus olhos?"

Em todo esse tempo, pensou muito. Ou melhor, não sabia precisar o quanto havia pensado. Talvez tivesse só olhado - e, depois, pensado. Entre pensar e olhar: qual a distância? Sem dúvidas, havia olhado incansavelmente, chegando até a ver a pedra lhe fazer um aceno, como se tomasse suco de laranja à beira da piscina. Viu até os gominhos de laranja, se movimentando ao calor daquele sol que acariciava a pedra e movimentava o suco. Viu também suor que pingava da testa da formiga que carregava a folha seca - "formiga tem testa?", pensou. Pensou pouco, realmente. Porque também não conseguia tirar os olhos das horas em que a folha seca pulava ligeiramente, voltando a pousar sobre as costas da formiga. Não, esse momento era imperdível!

Meio-dia, não era mais manhã. Olhou tanto, que se perdeu. Não nos pensamentos, mas nas horas - na parte do tempo que não é pensamento, por isso a gente se perde. Dormiu e acordou às 3 horas da tarde, a pedra já dormia calma e profundamente, e o sol já a havia traído com a copa da árvore que se regorzijava toda, enquanto dobrava a esquina da rua seguinte.

1.08.2009

Ao acaso de uma beringela, acontecidos pouco admiráveis


"Qual é o tamanho de um acontecimento?", perguntaria-lhe.

Tamanho de uma linha? Ou de um romance inteiro? A fotografia no jornal, a imagem comentada pelo noticiário da tv? O tamanho do acontecimento é um momento, tempo cronológico? Um dia? Uma noite? Uma madrugada? Tamanho de uma mesa de bar, de uma pista de dança? A extensão de uma música? Uma trepada? Um beijo fantástico?

Acontecimento é extensão? É pautado pela intenção? Pela intenção de não ser acontecimento?

Que espécie de acontecido deixa uma vida mais admirável?

Talvez, menos extensão e definitivamente fora de qualquer referencial de intenção - a "não-intenção" vive apenas pela existência prévia da intenção. Aquilo que não se pega, e que não se comunica. Assim, eu diria, adiantando-me a minha própria pergunta: incomunicável.
Também imbuscável: não se traça uma reta para se chegar a um acontecimento, nem um caminho, nem um projeto. Da ordem do que acontece, dentro do horizonte do sensível (aquilo que se sente sem se pegar, ou muito menos narrar), valorizar o acontecimento - cercá-lo de valores e significá-lo - é já matá-lo. Não se acontece por se querer que aconteça. Acontecimento é contingente e casual. Nunca, porém, causal. Andamos na rua todos os dias, e acontecemos em cada coisa e cada coisa acontece ao nosso olhar - e nosso corpo - no momento mesmo em que não os buscamos.

E não há nada de admirável nisso. (Há algo, em alguma parte?)

1.02.2009

O dono do ano

Então eles disseram que mudou o ano. Mais uma vez.

Já ele achou graça: é inescapável. Não que se permita ignorar totalmente o passar dos dias - os números que vão junto com a bateria do relógio - não, isso é impossível. Como os outros, ele tem prazos, datas e conta no banco, que enche e esvazia exatamente no compasso do calendário. Mas também não conseguiria viver acreditando na virada de algo para outra coisa diferente. Não que não vislumbrasse a mudança, mas, de fato, não aquela advinda com a passagem de um dia ao outro. Como se o momento da redenção pudesse surgir sempre, a cada 365 dias. "Já estou velho demais pra me levar por essas coisas...", diria, no tom mais espontâneo.

"Feliz ano novo", diriam-lhe (desejariam-lhe?), todas as vezes que se despedissem. Não, talvez não. "Um ótimo não-ano pra você", porventura quisesse ouvir algo assim. Não conseguia nunca formular uma frase pra preencher a demanda das felicitações desse período. Aí, lembrava-se: "não se trata de frases. Nunca".

Reservava-se sempre o direito do alívio com o fim dos festejos. Bom, 02 de janeiro já pode ser como 02 de dezembro e novembro. Voltava ao seu passar do tempo. O seu. E, tinha quase certeza, o de todos. Tempo bom, que passa e que digere as coisas mais materiais possíveis. Tempo, não números (o homem foi suficientemente ambicioso pra transformar em língua aquilo que é pura experiência).

Comeu um chocolate, tomou um vinho e acendeu um cigarro. Assim, sem mais nem menos, já era madrugada e ele foi se dando conta de que o ano é seu e de mais ninguém.