4.02.2014

toalha de mesa

a toalha que cobria a mesa da sala era rendada. tinha padrões geométricos, às vezes triângulos, às vezes quadrados, outras círculos. no meio de cada figura, uma flor se mostrava, pétalas abertas, como se a víssemos assim de cima, como num voo, quando as flores olham em direção ao sol. um jardim de flores sobre campos geométricos. eram simples, como margaridas. a toalha, comprada num dia de calor, sol forte e céu limpo, sem nuvens, havia custado muito pouco. quer dizer, eu nunca soube o preço, mas não podia ter sido mais do que dez reais. todos os sábados e domingos, havia uma feira no parque que ficava perto de casa, onde os artesãos da cidade expunham seus trabalhos. os artesãos eram, em geral, donas de casa aposentadas que usavam suas horas para fazer toda sorte de coisas: cestas de palha, suéteres de tricô, toalhas bordadas, brinquedos de madeira, bolsas de crochê. havia aquelas que vendiam seus bolos e salgadinhos, além dos eventuais artistas que pintavam paisagens e retratos das redondezas: sempre as mesmas. essa gente se sentava durante os finais de semana, debaixo da sombra das árvores, ao lado de suas barracas, e passava o dia tomando a brisa e se atualizando dos acontecimentos da semana na vida das barracas vizinhas. meus pais, todos os sábados, iam de manhã às compras, supermercado, farmácia, quitanda, padaria. era o ritual: todo sábado, os suprimentos para a nova semana. eu acordava e a casa vazia era um sinal da movimentação que acontecia do lado de fora, imaginava as andanças pelas calçadas, as conversas, as pequenas previsões do futuro: segunda teremos lasanha, suco de melancia para a criançada na terça, bolo de cenoura pra gente comer na quarta-feira, bacalhau pras visitas na sexta, hoje o almoço vai ser macarronada. essas adivinhações de um futuro tão próximo me davam energia pra começar o dia. esperança de que o tempo seguia. nesse sábado, meus pais resolveram dar uma volta na feirinha, com o nosso cachorro. "hoje vamos só ao supermercado, estamos cansados". naquela profusão de rendas, penduricalhos, comidas e crianças correndo, minha mãe viu essa toalha de mesa, feita com uns fios brancos tão finos que sua trama quase desaparecia. resolveu comprar pra cobrir a mesa naquele dia: meus tios e primos iam visitar, era meu aniversário. a toalha faria uma aparição sucinta: cobriria a mesa por uma meia hora, enquanto as visitas chegavam, antes da comida ser posta sobre uma outra toalha menos delicada. chegaram em casa, e minha mãe me mostrou a toalha: "olha só que bonita, comprei pro seu aniversário". alva, quase transparente, frágil e delicada, a toalha não parecia me representar. mas acatei a escolha, sem muita opção. no primeiro ano, a toalha era usada apenas em ocasiões especiais: aniversários, natais, jantares com visitas. ao longo dos anos, no entanto, as ocasiões se tornaram esparsas, e a toalha virou artefato do dia-a-dia. ficava dias seguidos sobre a mesa, ganhou umas manchas de café, e uma outra personalidade. enquanto o vazio da casa passou cada vez menos a carregar aquela promessa de futuro, a toalha garantia seu espaço no presente das nossas vidas, como se nos lembrasse ao mesmo tempo que o futuro existia, mas que ele tinha mudado de aparência. certo dia, minha mãe comprou uma parecida, só que feita de plástico. imitava as rendas, só que era apenas um maciço de um mesmo material, com micro furos emulando o trabalho rebuscado de fios rendados. "mais fácil de limpar". achei estranho, e quando repousava meu cotovelo sobre a mesa aquela toalha grudava no meu braço e eu tinha que usar a outra mão para retorná-la ao seu lugar. a toalha original, lavada, retornou ao armário, na esperança de que novos futuros fossem brotar da trama de seus fios, guardando aquele sábado quente, as conversas dos artesãos, e toda a nossa vida pra um outro momento glorioso. hoje, aguardo sempre ansiosamente o reencontro com a toalha, suas manchas, e todas as vidas em potencial que repousam lá, nosso eterno futuro, aquele tempo infinito.